Peço licença para falar na minha criança, a que mora aqui dentro e não me abandonará jamais. Talvez com a morte eu até regresse a ela. Os anos que dela me separam não a removem.
Ela ali está, magra e tímida a me olhar e ditar comportamentos e reações.
Ela se refaz da morte da irmã e abre os olhos para o mundo com a certeza de que veio ao mundo para alguma missão embora sempre se considere inferior ao tamanho da mesma.
Minha criança sente enorme saudade de pai e da mãe com quem o adulto já não conta salvo no exemplo, na saudade e numa ou outra fugidia sensação de estarem, incorpóreos, a seu lado mas sem se manifestarem.
Minha criança possui incomensuráveis solidões diante do mistério do infinito.
Ainda recua diante do violento embora não o tema e ainda se infiltra em episódios de distração e inocência inexplicáveis .
Minha criança ainda gosta de abraço caloroso, proteções misteriosas e de um modo de rezar que o adulto nunca mais conseguiu tais a entrega e a total confiança no Mistério e na proteção de Deus.
Minha criança carrega o melhor de mim, é portadora de meu modo triste de falar de coisas alegres e de algum susto misterioso sempre que se impõe alguma expectativa.
Minha criança é inteira, mansa, bondosa e linda.
Eu a amo, preservo, e dou boas gargalhadas quando a vejo infiltrar-se nas graves decisões de algumas de minhas responsabilidades adultas.
Ninguém a vê salvo eu.
Ninguém a acaricia salvo eu, que a estimo, procuro e admiro mais a cada dia e com quem converso histórias infinitas que somente a imaginação pode conceber no universo maravilhoso da fabulação.
Diariamente passeio com minha criança e estou muito feliz por cumprimentá-la, levar-lhe balas, nuvens, aquele cão da meninice, as canções de minha mãe e os carinhos de meu pai, levar-lhe os presentes que ganhava de meu padrinho e toda a enorme vontade de Ser que então adivinhava para a minha vida.
Vida que chegou, ameaça passar, e da qual não me arrependo.
Minha criança adivinhou em seus sonhos o adulto que eu queria ser.
Talvez com menos tensões mas igualzinho em meu modo de amar a vida.
(Artur da Távola)
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