segunda-feira, 27 de agosto de 2007
EU
Até agora eu não me conhecia, julgava que era Eu e eu não era...
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.
Mas que eu não era Eu não o sabia mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!
Andava a procurar-me - pobre louca!
- E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
E esta ânsia de viver, que nada acalma,
E a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!
Florbela Espanca
PORQUE?
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mão dada com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
na esperança dos teus olhos
Eu ouvi no meu silêncio o prenúncio de teus passos
Penetrando lentamente nas solidões de minha espera
E tu eras, coisa linda, me chegando dos espaços
Como a vinda impressentida de uma nova primavera
Vinhas cheia de alegria, coroada de grinaldas
Com sorrisos onde havia burburinhos de água clara
Cada gesto que fazias semeava uma esperança
E existiam mil estrelas nos olhares que me davas
Ai de mim, eu pus-me a amar-te, pus-me a amar-te mais ainda
Porque a vida no meu peito se fizera num deserto
E tu apenas me sorrias, me sorrias, coisa linda
Como a fonte inacessível que de súbito está perto
Pelas rútilas ameias do teu sorriso entreaberto
Fui subindo, fui subindo no desejo de teus olhos
E o que vi era tão lindo, tão alegre, tão desperto
Que do alburno do meu tronco despontaram folhas novas.
E eu te juro, coisa linda: vi nascer a madrugada
Entre os bordos delicados de tuas pálpebras meninas
E perdi-me em plena noite, luminosa e espiralada
Ao cair no negro vórtice letal de tuas retinas.
E é por isso que eu te peço: resta um pouco em minha vida
Que meus deuses estão mortos, minhas musas estão findas
E de ti eu só quisera fosses minha primavera
E só espero, coisa linda, dar te muitas coisas lindas....
- Vinicius de Moraes
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